Coluna A Música, o Luzeiro e o Tempo - por Mirianês Zabot


Quando a leveza de um filme, despretensiosamente nos faz pensar sobre os valores da sociedade e o quanto somos influenciados por eles...

Lançado em 1987, o filme “Dirty Dancing – Ritmo Quente” conta a história de Baby, interpretada por Jennifer Grey. A jovem vive cercada por pessoas que, há todo instante, tentam protegê-la dos supostos perigos do mundo, mesmo assim, ela se apaixona pelo marrento dançarino, Johnny Castle, vivido por Patrick Swayze (1952-2009). Tudo se passa no verão de 1963.

A roteirista e idealizadora do filme, Eleanor Bergstein, - especialista em enredos cuja dança é o tema central -, escreveu sobre sua própria história, usando inclusive seu apelido de juventude para batizar a mocinha: Baby. Eleanor, - até então a única a acreditar no projeto -, convidou a produtora Linda Gottlieb e o diretor Emile Ardolino, - um estreante em longa-metragem, que mais tarde viria a dirigir outro grande sucesso, “Mudança de Hábito” (1992). Após amargar com a recusa de 20 estúdios de cinema, o longa finalmente foi gravado por um pequeno estúdio e lançado no Festival de Cannes, recebendo diversos prêmios e indicações, como ao Globo de Ouro de Melhor Filme e de Melhor Ator/Atriz, pelas performances de Grey e Swayze. Alcançou ainda, um enorme sucesso de público e críticas, consagrando-se como o primeiro filme a vender mais de 1 milhão de cópias, em fitas VHS.

A narrativa questiona a hipocrisia na sociedade e nas famílias, enaltecendo a nobreza de coração e a bondade. A protagonista, Baby, tem personalidade forte, é justa, corajosa e lúcida, - apesar de sua pouca idade. Temendo a reação de seu pai, - homem que goza de privilegiado status social -, inicialmente ela não assume seu namoro com um instrutor de dança do resort onde ela e sua família costumam passar férias: o honrado e trabalhador, Johnny. Seguindo sua verdade, e não os projetos que a sociedade idealizava para jovens de sua posição, Baby, com seu olhar amoroso, - capaz de perceber o lado bom de todas as pessoas -, deixa aflorar sua essência generosa e altruísta, inspirando a todos.

No filme musical, a inocência da protagonista e os costumes vigentes na época, são musicalmente representados, em danças como os tradicionais Foxtrotes e Valsas. Fazendo um contraponto, temos a liberdade sexual e de ideias, preconizada pelos jovens dos anos 60 e ritmicamente demostrada no Rock and Roll, Rhythm and Blues e Pop. A ruptura com os antigos pudores também se faz presente nas danças do Merengue e da Patchanga. O repertório que animava as festas, concursos e números de dança ilustra, de forma muito inteligente, as constantes transformações do mundo, das pessoas e das tradições, aquilo que é tido como moderno, em instantes torna-se ultrapassado.

Com destaque para os passos limpos e elegantes de Patrick Swayze, os números de dança apresentados ao longo do filme são irretocáveis e magnéticos.

A contagiante trilha sonora de Dirty Dancing, - assinada por John Morris
Erich Bulling -, foi uma das mais vendidas dos anos 80 e garantiu um lugar na lista dos 200 álbuns definitivos do “Corredor da Fama do Museu do Rock and Roll”, instituição dedicada a registrar a história desse gênero musical, com sede em Cleveland, nos Estados Unidos.

Vejamos o repertório elencado para embalar essa apaixonante trama:

Não é por acaso que “(I've Had) The Time of My Life” tornou-se um clássico. A música, - que rendeu ao longa um Oscar e um Globo de Ouro de Melhor Canção Original -, traz um arranjo excepcionalmente criativo e bem resolvido. Além do marcante groove de guitarra e das inesperadas convenções da bateria, ela ainda tem um primoroso e inesquecível dueto de Bill Medley e Jennifer Warnes, merecedor do Grammy de Melhor Performance Pop de Dueto.

Aparecem também outras memoráveis músicas dos anos 50 e 60, como o Rockabilly “Hey Baby”, - grande sucesso de Bruce Channel -, e “Stay”, um Doo-Wop de Maurice Williams and The Zodiacs. Seguindo no clima das letras inocentes, vem “Be My Baby”, do girl group The Ronettes. Com a delicada interpretação de “Love Is Strange”, a dupla de R&B, Mickey e sua ex-aluna Sylvia, figuraram entre os 20 artistas mais importantes de 1957.

A nostalgia dá o tom em “In The Still Of The Night”, com harmoniosos vocais do grupo The Five Satins, no melhor estilo Doo-Wop. A música “Where Are You Tonight”, da carreira solo de Tom Johnston, - fundador do grupo The Doobie Brothers -, é uma mistura de Rock com Rhythm and Blues, que também ganhou um elegante arranjo vocal e um expressivo naipe de metais.

Já nas canções com digital mais Pop, Patrick Swayze emprestou sua voz para a balada “She's Like The Wind”, bonita letra composta e co-produzida, - especialmente para o filme -, pelo próprio ator em parceria com Stacy Widelitz. Em “Hungry Eyes” temos a interpretação, - nada inocente -, de Eric Carmen, já em sua fase solo.

O Rock'n'Roll mais enérgico do repertório é “Overload”, composição e interpretação de Alfie Zappacosta, em parceria Marko Luciani. O Rock Soul “Yes”, ganhou vida na voz rasgada e intensa da cantora Merry Clayton. Encerrando a envolvente lista de músicas, temos a libertária “You Don't Own Me”, um Blues da banda inglesa The Blow Monkeys.

Depois de 33 anos de espera, uma sequência de Dirty Dancing, - dessa vez com a atriz Jennifer Grey no elenco -, foi anunciada pelo estúdio Lionsgate. Mostrando que sempre é bem-vindo um filme com apontamentos de liberdade, autoconhecimento, caráter e almas gentis.

Em nosso íntimo, sabemos muito bem qual é o caminho que devemos seguir. Se olharmos para nós mesmos com atenção e carinho, teremos condições de distinguir situações que nos alegram e nos enchem de entusiasmo, daquelas tarefas que fazemos por simples obrigação, hábito ou porque alguém disse que deveríamos assim proceder. Para vivermos em paz, é importante separarmos as crenças que nos são genuínas, daqueles que a sociedade projetou para nós.

          Deixemos que aquela criança, que um dia fomos, seja nossa guia para encontrarmos um ofício, um amor, um estilo de vida ou um jeito de ser, que preencha nossos dias com a verdadeira felicidade e nos conduza às mudanças necessárias para que nos tornemos nós mesmos.


por Mirianês Zabot






Dirigido por Henrique Dantas e lançado em 2019, - pela Hamaca Filmes com co-produção do Canal Curta! -, o premiado documentúrio “Dorivando Saravú, O Preto Que Virou Mar”, de forma delicada e poética, apresenta a vida e obra de Dorival Caymmi (1914-2008), tendo sua negritude como o fio condutor da narrativa.

Como colunista, editora musical no Cine.RG e cantora, assisti ao documentário a convite do “In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical”, - evento que nasceu em Barcelona e atualmente é realizado em diversos países -, neste ano, sua 12º edição chega ao público brasileiro em versão online, entre os dias 9 e 20 de setembro.

Já apontando a direção do navegar, - e tão envolvente quanto o canto de Janaína -, “Vamos Chamar o Vento” (1959) é a canção de Caymmi que abre o filme documental:
“Quem ouve desde menino
Aprende a acreditar
Que o vento sopra o destino

Pelos caminhos do mar”
Caminhos do Mar (Dorival Caymmi)

Depoimentos em áudio, do próprio compositor, costuram o roteiro do filme. Caymmi explica como a espiritualidade, - aguçada pela sua dedicada vivência no Candomblé -, lhe pôs em sintonia com a natureza e com sua terra. Comenta ainda sobre a sua forma de assimilar e cumprir a missão de fé que lhe fora confiada. A gravação de “Canto de Nanã”, na qual Caymmi é acompanhado somente por tambores africanos e um coro de vozes, ilustra a tocante cena.

Ao lado dos amigos Jorge Amado (1912-2001), - também baiano -, e dos estrangeiros naturalizados Carybé (1911-97) e Pierre Verger (1902-96), Caymmi mostrou ao Brasil e ao mundo toda a riqueza cultural da Bahia, valorizando os Orixás, os trabalhadores do mar, as lendas e a descendência africana. Tornando-se inspiração para sucessivas gerações de músicos. No documentário, artistas como Gilberto Gil, Moraes Moreira, Tom Zé, João Donato, Adriana Calcanhotto, Letieres Leite, Marina De La Riva, Tiganá Santana, BNegão, Lucas Santtana e Mateus Aleluia, o produtor musical Roberto Sant'Ana e ainda, as filhas de Jorge Amado, - Paloma Amado -, e de Carybé, - Solange Bernabó -, prestam a devida reverência e relembram histórias, emocionantes e hilárias, vividas ao lado do mestre Caymmi.

Caymmi cantou muito mais o trabalho do que a sua lendária preguiça, como bem descreve na canção “Milagre”, - no longa-metragem, interpretada por Gil -. Ele era um operário da música, lapidava cada frase de uma nova composição por meses ou até anos. Explicando esse assunto, certa vez disse: “Vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas, sobrando por aí”. Ele respeitava o ócio criativo. Sabia se relacionar com o tempo da criação, com o tempo espiritual e com o bem-viver, em contrapondo ao ritmo demasiadamente acelerado e agressivo do capitalismo. Sagaz que era, Caymmi até fez um bom uso daquela sua fama de preguiçoso: “Eu passei a fazer do tipo preguiçoso uma arma. Pra evitar chatice eu digo que não faço porque tô com uma preguiça!”. Aliás, Caymmi também era pintor, mas dedicado como ele só, julgava não ter tempo suficiente para doar-se como gostaria a mais esse fazer artístico.

Caymmi tinha um grande poder de síntese em sua composição, com maestria, compilava em uma única canção o que há de mais essencial na música. Tudo era carinhosamente maturado: a letra, levada ao violão, interpretação vocal, pulsação e arranjos. A irretocável estrutura melodia e harmônica de suas músicas traduzia também o claro entendimento que detinha sobre o viver. Usava-se do mar, como figura de linguagem, para representar a infinitude e renovação da vida:
“Andei por andar, andei
E todo caminho deu no mar”

Não só o artista é apresentando no longa, mas também o homem Dorival, calmo, afetuoso, ritualístico, organizado, metódico, devotado à arte, aos amigos e à natureza, - já que ele tinha sensibilidade suficiente para perceber a representação da divindade dos Orixás, nas águas, nas plantas e nos animais -. A leitura de uma deliciosa e jocosa carta de Caymmi, endereçada ao parceiro Jorge Amado, nos leva a mergulhar cada vez mais em seu jeito de ser e na forma como ele via seu ofício.

Em “A Lenda do Abaeté”, gravação de 1959, Caymmi traz histórias de assombração, que ele ouvira quando criança. Após mudar-se para o Rio de Janeiro, alimentava uma saudade da Bahia de outrora, da terra de sua meninice, na qual, - em pensamentos ou por meio de suas canções -, ainda encontrava refúgio.

Apesar de ter tido um rápido envolvimento partidário, Dorival, não nutria grandes interesses pela política ou por ideologias, porém sua contribuição para a sociedade foi muito além. Mais do que um singular compositor, violonista e cantor, Caymmi foi também um revolucionário, - que com leveza, classe e altivez -, conseguiu a proeza de fazer sucesso cantando temáticas de afrodescendência e Orixás, enquanto, no Rio de Janeiro, Terreiros de Candomblé eram fechados pela polícia. Ele, - que por ser preto, teve sua vaga na Academia Baiana de Letras rejeitada, antes mesmo de receber o convite formal -, legou uma obra que nos leva a refletir sobre as agruras advindas da diáspora negra e sobre a importância de valorizarmos e entendermos a contribuição de todos os povos formadores do Brasil, sejam eles, indígenas, africanos ou europeus. Sobre tais questões Caymmi e seu parceiro Jorge Amado, já nos alertavam em “Retirantes (Vida de Negro)”, - gravação que tem extraordinário arranjo, assinado por Waltel Branco para a abertura da novela “A Escrava Isaura”, exibida pela Rede Globo em 1976 -. A partir dessa época, o artista passa a se colocar cada vez mais como personagem de suas próprias canções, valorizando suas tradições e negritude, aparecendo em fotos, por exemplo, usando colares de contas do Candomblé.

A cantiga “Oração de Mãe Menininha” embala o depoimento de Caymmi, no qual se define como um admirador das mulheres, entendendo-as como pessoas que exercem seus trabalhos no Candomblé e em outras esferas de suas vidas, com eficiência, beleza e uma cândida autoridade. Várias das músicas que compôs foram para mulheres, sempre tratando-as com adoração e carinho. Todas elas representavam sua amada companheira Stella Maris, - que faleceu apenas dez dias antes de Dorival, sem que ele soubesse de sua morte -.

Diversas outras músicas são mencionadas ou cantadas pelos artistas convidados do filme, tais como, as dolentes “É Doce Morrer no Mar”, - com Jorge Amado -, “A Jangada Voltou Só e “Noite de Temporal”, ambas de 1959, e ainda “Sargaço Mar”, de 1985. Essas letras mostram a relação de Caymmi como a morte, entendendo-a como uma transmutação ou recomeço. Para ele, a certeza do fim era um estímulo para fazer a vida valer. O mesmo homem que tanto cantou os encantos e mistérios do mar, também guardava um imenso respeito pelo Reino de Iemanjá: ele só adentrava ao mar, até o ponto em que a água batesse, no máximo, em seus joelhos.

Envolvente, bonito e sensível, o filme documental “Dorivando Saravá, O Preto Que Virou Mar”, é capaz de ampliar nossa visão de mundo, tirar nosso ar e elevar nossa alma, através de imagens primorosamente selecionas e de inteligentes recortes da magnífica e lúcida obra de Dorival Caymmi, - artista que foi um divisor de águas para a música e para a cultura brasileira -. Um gênio que eternizou sua arte orientando-se pela bússola da delicadeza, ternura, dedicação e do profundo respeito pelas pessoas, pela natureza e pela vida. Caymmi encantou-se! Dorival virou mar!

* Confira a música “É Doce Morrer no Mar”, nas vozes de MIRIANÊS ZABOT e OSWALDO BOSBAH, no show Saravá, Caymmi!: https://youtu.be/dmsOjY8gp2I

Por Mirianês Zabot








Em 22 de agosto comemoramos o Dia do Folclore. É imprescindível para um país conhecer as suas raízes e tradições. A cultura popular brasileira é a nossa digital e também nossa bússola, pois observando o passado, poderemos edificar um belo futuro.

Cabe aos folcloristas, pesquisar e registrar o conjunto de saberes tradicionais de seu povo, que são as lendas, anedotas, crenças, músicas, danças, brincadeiras, vestuários e comidas típicas. Alguns dos mais importantes estudiosos do nosso folclore foram: o potiguar Luís da Câmara Cascudo, o paulistano Mário de Andrade e os gaúchos Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, juntos eles nos deixaram um vasto acervo, fundamental para manter viva a cultura popular de diversas regiões do Brasil. Importantes escritores buscam no folclore a base para criar suas obras, entre eles, Monteiro Lobato, criador do “Sítio do Picapau Amarelo”, coleção de livros lançados a partir de 1920.

Agraciada pela UNESCO, com o prêmio de melhor programa infantil, a série de fantasia "Sítio do Picapau Amarelo", produzida pela TV Globo de 1977 até 1986, é uma adaptação da obra de Monteiro Lobato, feita por Benedito Rui Barbosa e Wilson Rocha, sob a direção de Geraldo Casé. Aliás, antes de estrear na Globo, outras versões da fábula já haviam sido exibidas no cinema e na televisão, - pela Rede Tupi, TV Cultura e Rede Bandeirantes -, nas década de 50 e 60.

A trilha sonora e direção musical da primeira temporada do “Sítio do Picapau Amarelo”, ficou sob as competentes mãos de Dori Caymmi, que também assina, ao lado do diretor de produção Guto Graça Mello, os criativos arranjos, - que fazem referência a tradicionais gêneros da música brasileira e ao mesmo tempo os atualizam -. A direção de estúdio foi feita por Dori e João Carlos Botezelli (Pelão).

Um time de interpretes e compositores geniais foi escalado para a empreitada de criar canções, exclusivamente para os personagens do seriado. Cada artista adotaria um desses personagens para musicar. Mas Gilberto Gil tinha outros planos... Ao receber o convite de Dori, foi logo reivindicando: "Está todo mundo fazendo música para um personagem, eu quero logo é fazer uma música que fale de todos eles”. E assim nasceu o icônico tema de abertura:
“Boneca de pano é gente
Sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo
Sítio do Picapau Amarelo”

Eis uma trilha sonora que encanta adultos e crianças!

Compositores, arranjadores e interpretes, souberam captar com perfeição a essência dos personagens Lobatianos. A menina Narizinho foi embalada pela doce e límpida voz de Lucinha Lins, na delicada canção de Ivan Lins e Vitor Martins, que conta com piano do próprio Ivan. Já o sonhador Pedrinho, para arquitetar seus grandes planos, ganhou música de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, com interpretação etérea do grupo Aquarius.

O sobrenatural é tema para a música do preto velho, Tio Barnabé. Com percussividade africana, característica dos terreiros, a composição de Marlui Miranda, Jards Macalé e Xico Chaves, fala sobre orixás e lendas brasileiras, pelas vozes de Marlui e Jards. A acolhedora Tia Nastácia é acompanhada pela suave cantiga do mestre, Dorival Caymmi. Dona Benta, - que com seu jeito carinhoso, nos lembra da importância de ler e de contar histórias -, recebeu uma sensível canção, também de Ivan Lins e Vitor Martins, através do canto de Zé Luiz Mazziotti.

Personagens folclóricos como o peralta Saci-Pererê e a feiticeira jacaré Cuca, fazem parte da trama. O Saci é perfeitamente representado pela música jocosa e saltitante de Guto Graça Melo, com arranjo vocal do Papo de Anjo. O mesmo grupo também interpreta "Ploquet Pluft Nhoque (Jaboticaba)”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. O Sítio, ainda recebe esporádicas visitas de outros seres do imaginário popular, como o Curupira, a Iara, e os assombrosos: Lobisomem e Mula-sem-cabeça. Até alguns mitos e heróis estrangeiros eventualmente dão ar da graça.

Nessa narrativa lúdica, objetos inanimados ganham vida. A serelepe boneca de pano, Emília, - considerada como um alter ego de Lobato -, teve suas birras e espertezas conduzidas pelo pulsante xote-baião, concebido e interpretado por Sérgio Ricardo. Visconde de Sabugosa é um sabugo de milho com conhecimentos enciclopédicos e ares de doutor, cujas aventuras são embaladas por um excelente samba de João Bosco e Aldir Blanc, contando com a interpretação e a levada singular do violão de Bosco.

A série apresenta fascinantes animais falantes, como o porco Rabico, o carteiro Jabuti e Quindim, - um rinoceronte africano que, após fugir do circo onde sofria maus tratos, foi-se refugiar no Sítio do Picapau Amarelo -, eles porém, só foram ter músicas próprias com o lançamento do segundo LP do seriado. Também estão no elenco insetos, pássaros e peixes, - esses últimos, os habitantes do Reino das Águas Claras -, ganharam o tema “Peixe”, de Caetano Veloso, com arranjo moderno e minimalista interpretado pelos Doces Bárbaros.

Completam o repertório do primeiro LP da série, o baião “Arraial dos Tucanos”, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando, pelo qual Ronaldo Malta canta os anseios dos moradores do vilarejo, onde o pessoal do Sítio faz suas compras. O envolvente tema enaltece os que ganham seu sustendo pelos frutos da terra, desejando apenas viver em paz. “Passaredo” é uma ode à natureza, em um grandioso arranjo vocal do MPB4. Enquanto finalizava essa letra, Chico Buarque de Hollanda, fez incansáveis ligações para um amigo botânico, perguntando: será que você não teria aí mais uns nomes de passarinhos para me informar? Resultado: quase 40 espécies foram aninhadas na sofisticada melodia de Francis Hime.

Além da beleza da música original da série, a apurada trilha fundo também merece destaque. No decorrer dos episódios, aparecem bonitos temas do cancioneiro, em versões instrumentais, é o caso do clássico “Tristeza do Jeca”, de Agenildo de Oliveira, - música do personagem Jeca -.

Vale destacar, a riqueza do vocabulário utilizado na narrativa. Apresentando o que há de mais bonito, poético e genuíno na cultura brasileira, estão: o caipira Jeca com seu fraseado matuto e o Tio Barnabé com sua sabedoria popular. Já o paquiderme Quindim, além de falar seu idioma pátrio, - o inglês -, ainda faz um elegante uso da língua portuguesa. Com sabedoria, o Visconde serve-se de rebuscados termos científicos, frutos de suas incansáveis pesquisas literárias.

Por um lado, a obra de Monteiro Lobato contribuiu enormemente para divulgar e valorizar o folclore brasileiro, por outro lado, reverberou alguns estereótipos da época, como o racismo e preguiça do caipira. Nada que uma edição, feita com olhar delicado e gentil, não resolva, uma vez que essas abordagens acontecem em cenas pontuais. Demostrando que a história segue encantando sucessivas gerações, está previsto para 2022 o lançamento de um filme live-action, intitulado "De Volta ao Sítio do Picapau Amarelo". Além disso, outras produções da série seguem em exibição, pela Globo e pelo Cartoon Network.

A música que nos é apresentada quando somos crianças, impacta nossa formação como cidadãos. São valores que levamos conosco por toda a vida. O estimulo sonoro que recebemos na infância, é nossa referência para lidar com os problemas que a vida nos apresenta, - se ouvimos músicas edificantes, estaremos predispostos a ter reações de maior empatia -. Além do desenvolvimento intelectual e moral, a música potencializa, nas crianças, as habilidades de aprendizagem e tem impacto no desenvolvimento físico e cognitivo. A música é, por fim, um veículo para aflorar emoções contidas.


* Confira a música “Sítio do Picapau Amarelo”, na voz de MIRIANÊS ZABOT, com violão de Oswaldo Bosbah: https://youtu.be/mlaTs-Y-Jyo

Por Mirianês Zabot








Próximo domingo é o Dia dos Pais. Em nossa jornada pela vida, nos cabe aprender a honrá-los, pois foram eles que nos mostraram, através de suas atitudes, que “servir é a arte suprema”.

Dirigido e estrelado por Roberto Benigni, e com música original de Nicola Piovani, a comédia dramática "A Vida é Bela", lançada em 1997, é uma das mais comoventes histórias sobre pais e filhos, já contadas pelo cinema. Em meio aos horrores do Holocausto, em um campo de concentração nazista, o judeu italiano Guido usa toda a sua imaginação e bom humor, para fazer com que seu pequeno filho Giosué acredite que tudo não passa de uma divertida gincana, com tarefas a cumprir e o objetivo de ganhar o grande prêmio: um tanque de verdade. Guido ainda encontra formas criativas de enviar mensagens de alento a sua esposa, também confinada. De forma lúdica e poética, o filme apresenta a mais nobre e a mais bestial das faces humanas.

O longa recebeu 9 premiações no David di Donatelli, 1 prêmio no Festival de Cannes, 3 Oscars, - incluindo o de Melhor Trilha Sonora -, e 1 indicação ao Grammy na categoria de Melhor Composição Instrumental. Antes do seu lançamento, surgiram críticas por conta da abordagem cômica que seria usada para falar de tamanha tragédia humana, porém, pela forma sensível como foi conduzido, a resistência inicial logo foi substituída por elogios, já que o filme em nada desrespeitou ou minimizou o sofrimento vivenciando pelas pessoas perseguidas durante a Segunda Guerra Mundial.

Destacam-se na trilha sonora de "A Vida é Bela", as seguintes canções:

"La Vita è Bella" é a melodia alegre, leve e otimista, que aparece em cenas jocosas do filme, como por exemplo, quando Guido e seu amigo Ferruccio tentam colocar em prática o pensamento do filósofo Schopenhauer: quando há força de vontade tudo é possível. Essa é a ideia que norteia a vida do protagonista, - tanto nos dias mais suaves, quanto nos momentos sombrios -. A música retorna, como tema fundo para a hilariante cena de Guido, explicando às crianças de uma escola, o quanto é infundada a teoria da superioridade de raça.

"Boun Giorno Principessa" é a delicada canção que traduz a pureza e a autenticidade do amor entre Guido e Dora. O enredo do casal também é embalado por "Belle Nuit (Barcarolle)", - ária da ópera "Os Contos de Hoffmann" -, interpretada por Montserrat Caballé e Shirley Verrett.

O conto de fadas de Giosué se torna realidade ao som da emocionante e arrebatadora "La Notte di Favola" e da marcha “Arriva il Carro Armato”. A bonita melodia "Abbiamo Vinto" enche nossos corações, no momento em que o menino reencontra sua mãe Dora e, - ainda eufórico e encantado -, lhe conta que acabara de ganhar seu tão desejado tanque. Essas músicas nos conectam com nossas emoções e lembranças mais profundas, despertando um sentimento esperança e gratidão.

É impossível manter-se apático a tal sequência musical, que de forma sublime emoldura a história do amor incomensurável de um pai e de uma mãe, por seu filho. Músicas têm o poder de nos colocar em sintonia com boas vibrações e bons sentimentos. Portanto, vamos cultivar o hábito saudável de apreciar arte de qualidade, para que essas edificantes sensações tornem-se parte de nós.

Seja qual for a configuração familiar ou as circunstâncias que a vida venha a apresentar, o maior legado que um pai pode deixar para seu filho é mostrar-lhe o que é amar. Feliz Dia dos Pais!


por Mirianês Zabot






O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, lançado em 2001 sob a direção do francês Jean-Pierre Jeunet, é um filme cheio de sutilezas, que destaca o valor de cultivarmos e vivenciarmos os pequenos prazeres, como contraponto à solidão. Uma obra extremamente humana, que rendeu cinco indicações ao Oscar e uma ao Globo de Ouro, entre outras importantes premiações.

A envolvente trilha sonora, composta por Yann Tiersen, - descoberto por acaso pelo diretor do longa, graças a um de seus estagiário, que durante uma viagem de carro, estava ouvindo uma fita cassete do artista -, dá um tom jocoso para a história, de uma vida bem comum, protagonizada pela inocente Amélie Poulain. Nossa heroína cresceu isolada de outras crianças e recebeu pouco amor de seus pais, - que assim como todos os demais personagens, eram pessoas de gostos e hábitos simples -. Para fugir da frieza de seu pai, do nervosismo de sua mãe, e do tédio dos dias, Amélie inventava para si um mundo mais empolgante e cheio de aventuras.

O filme, rico em detalhes, merece ser apreciado com olhos atentos, principalmente às expressões da atriz Audrey Tautou, que soube captar com maestria as delicadas nuances da protagonista. As cores utilizadas durante todo filme foram vermelho e verde, acompanhados por uma luz laranja-amarelada. Essa combinação de cores, expressa a energia vital de Amélie, que a despeito de qualquer adversidade, mantem-se sempre otimista. O mesmo conjunto de cores representa também o processo de amadurecimento dessa personagem. Existe sinergia entre as cores, as sutilezas das interpretações e os detalhes das cenas, que se misturam lindamente com a música fundo.

A trilha fundo foi executada predominantemente por um acordeon, com algumas interversões ao piano e orquestrais. A escolha por um arranjo que traz o acordeon como protagonista é bastante interessante, já que pelo respirar de seu fole, esse instrumento revela a alma do enredo, criando uma atmosfera leve e lúdica, que nos coloca em um estado de bem-estar, em harmonia com nós mesmos, no mais perfeito fluir ao compasso da vida.
    
A única música com letra é a valsa “Si tu n'étais pas là”, de Gaston Claret e Pierre Bayle, que foi gravada em 1934, pela cantora e atriz francesa Fréhel, cujo nome de batismo é Marguerite Boulc’h, - uma ex-menina de rua, que aos cinco anos de idade, cantava acompanhada de um cego -. No filme, esse o registro fonográfico ecoou em uma estação de trem, vindo de uma vitrola, nostalgicamente acomodada no colo de um personagem, também cego.

Amélie desenvolveu um gosto por observar o mundo e as pequenas coisas, que ninguém mais vê, assim ela vive em um constante flerte com a solidão e, toda vez que esse sentimento se aproxima, ouvimos a introspectiva “Comptine d'un autre été, l'après midi”. Já “L'Autre valse d'Amélie” é o encantador tema que toca sempre que o amor se avizinha de algum dos personagens do filme.

Em um determinado momento, Amélie teve seu destino revelado: ajudar os outros através de pequenos gestos, levando assim, mais poesia e espanto a vida dessas pessoas. O tom fantástico, cômico e imaginativo do filme se fez presente quando ela apareceu fantasiada de Zorro, mantendo sua identidade em anonimato, de forma altruísta oferecia às pessoas, aquilo que mais lhes fazia falta. Com uma sensibilidade certeira, Amélie, conduziu o cego até a entrada do metrô, nesse rápido caminho que percorreram de braços dados, ela devolveu luz ao coração desse homem. Tornando-se seus olhos, com entusiasmo, ela narrou uma grande quantidade de detalhes presentes na rua e nas lojas por onde passaram. A dinâmica dessa inspiradora cena se deu com “La Valse d'Amélie”.

A contagiante “A quai" nos lembra de deixar a porta aberta, para que o inesperado possa acontecer. A marcha “Les jours tristes” enche nossos corações. Talvez seja, justamente, seu ritmo marcial quem nos coloca em movimento, com vontade ir à luta, expurgando os dias tristes. 

O filme mostra que o fabuloso está nas pequenas coisas, naqueles instantes que valem por uma eternidade. Uma oportunidade pode demorar muito para chegar e, ir embora bem depressa. A vida é feita de sucessivos acontecimentos, alguns bons, - outros ruins -, o que realmente importa, é sermos capazes de apreciar cada um desses mágicos acontecimentos.


por Mirianês Zabot






Num 9 de julho, há 40 anos, Vinicius de Moraes nos deixava. Sua obra, no entanto permanece através do tempo. Ela corre mundo, alimentando nossa sensibilidade, mostrando que ainda somos, e sempre seremos, capazes de amar.

Baseado na peça teatral “Orfeu da Conceição” de Vinicius de Moraes, o filme “Orfeu Negro”, lançado em 1959, tem direção do francês Marcel Camus e trilha sonora assinada por Tom Jobim e Luiz Bonfá. Reconhecido internacionalmente, o longa faturou um Oscar e uma Palma de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, tornando-se referência para a produção cinematográfica brasileira. Nos lembrando da grandeza da obra do Poetinha.

A peça “Orfeu da Conceição”, lançada três anos antes do filme, é de fundamental importância para a nossa música, pois marca o encontro de Tom e Vinicius, que deu origem ao que se tornaria a Bossa Nova, um dos mais importantes movimentos musicais brasileiros. Além das formidáveis canções da dupla, o convite, feito pelo já consagrado poeta e diplomata Vinicius de Moraes, para que juntos compusessem a trilha musical do espetáculo, rendeu aquela famosa frase dita pelo jovem Jobim: "Tem um dinheirinho nisso aí?", mal sabia ele que tal parceria lhes renderia projeção mundial e garantiria um lugar de prestígio na história.

“Orfeu Negro” é um filme delicado, cheio de poesia e simbologia. Sua trilha fundo se entrelaça com os sons da cidade. Uma música desliza harmoniosamente para outra música, ou para o afinado apito do navio que chegou ao cais da Cidade Maravilhosa, em pleno carnaval, trazendo a bordo a terna Eurídice, que chegara do sertão nordestino. Por meio de uma sinfonia carioca ou, melhor dizendo: um samba de enredo, o maestro soberano Tom Jobim, ao lado do não menos admirável Luiz Bonfá, nos apresentam a esse inebriante cenário.

Sambas, frevos, batucadas, feiras livres e o tradicional bondinho, dão o tom das festividades carnavalescas. O lúdico toma conta daqueles dias. Até mesmo um homem pobre, com suas vestes puídas, sai da loja de penhores com sua fantasia de rei, sentindo-se como tal, pelo menos enquanto durar o carnaval.

O envolvente “Frevo de Orfeu”, de Vinicius em parceria com Tom, nos apresenta ao sedutor protagonista, Orfeu, músico e morador do morro. O positivo samba “O Nosso Amor”, dos mesmos compositores, aponta o desejo de que essa contagiante felicidade perdure.

Na voz de Agostinho dos Santos, o lirismo do samba “A Felicidade”, de Vinicius e Tom, já nas primeiras cenas do filme, nos alerta para o quanto a felicidade pode ser efêmera, a exemplo da euforia do carnaval, que fatalmente acaba na quarta-feira de cinzas. É um suave anúncio do desenrolar desse enredo, que é um convite para pensarmos sobre a brevidade da vida.

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite, passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor
Pra que ela acorde alegre com o dia
Oferecendo beijos de amor

A mesma música retorna mais adiante, quando além de descrever de forma muito sutil uma cena romântica, também demostra que a força do amor de Orfeu por Eurídice é capaz até de fazer com que o sol rompa o véu da noite, trazendo uma alegre manhã de carnaval. Com uma alusão ao mítico Orfeu grego, que para trazer de volta sua amada, do mundo dos mortos, não poderia olhá-la enquanto ela não estivesse novamente sob a luz do sol. A ideia de levar essa história para uma favela no Rio de Janeiro surgiu quando, ao ler um livro sobre mitologia, Vinicius ouviu na vizinhança o som vindo de uma roda de samba.

No mito grego, Orfeu tocava uma lira, ao som da qual ninguém podia conter a emoção. Já no filme, toca violão e ao cantar a comovente “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, faz despertar o amor de Eurídice por ele, como almas que se reencontram. Esse samba se tornaria uma das músicas brasileiras mais regravadas, contabilizando quase 300 registros fonográficos, incluindo interpretações por grandes nomes da música mundial.

Manhã, tão bonita manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos
Pois há de haver um dia
Em que virás

Conforme descrito na tragédia grega, o Orfeu negro também viaja ao submundo, para encontrar sua amada. A adaptação se dá em um terreiro de Umbanda, - religião de matiz africada surgida no subúrbio do Rio de Janeiro em 1908 -, onde o herói fala com sua Eurídice, uma última vez, entoando um ponto para Ogum Beira-Mar, em um gira de caboclos.

Após a tragédia de Orfeu, seu amigo Hermes, - uma referência ao deus grego mensageiro, inventor da lira e patrono dos poetas -, lhe ensina o valor da caridade e acima de tudo: da gratidão. Porque qualquer instante de encantamento, já terá iluminado o caminho de uma vida inteira.

O mágico encontro de Orfeu com Eurídice finda com “Samba de Orfeu”, outra parceria de Bonfá e Antônio Maria, coroando, - com uma das cenas mais bonitas do filme -, a certeza de que através da inocência das crianças, a alegria sempre haverá de renascer.

* Confira a música “A Felicidade”, no show Mirianês Zabot e Oswaldo Bosbah cantam Vinicius de Moraes: https://youtu.be/OWMSwY6P2HY

por Mirianês Zabot








Em 19 de junho, comemoramos o Dia do Cinema Brasileiro. Foi nessa data, no ano de 1898, que Affonso Segretto registrou as primeiras imagens em movimento, feitas no nosso País. Ele filmou a sua entrada na Baía de Guanabara, a bordo do navio Brésil, retornando da Europa, após fazer um curso de operação de cinematógrafos.

Desde então, passaram-se mais de 120 anos de produções cinematográficas brasileiras. Dentre as quais, está o filme Cidade de Deus, que rendeu ao Brasil quatro indicações ao Oscar e uma indicação ao Globo de Ouro, - além de outras premiações -, colocando o cinema nacional em um novo patamar. Lançado em 2002, com direção de Fernando Meirelles e com música original de Antônio Pinto e Ed Côrtes, é uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins, escritor que cresceu na Cidade de Deus, subúrbio do Rio de Janeiro.

O longa conta a história de dois meninos, moradores da Cidade de Deus: Buscapé e Dadinho. O primeiro sonhava ser fotógrafo e o outro, queria ser bandido. A narrativa se desenrola sob o olhar de Buscapé, que se depara com a oportunidade de tirar a foto que mudaria sua vida ou que o levaria à morte.

A trilha sonora tem um papel fundamental para nos ambientar nessa história, nos conduzindo a uma época na qual a vida, mesmo sendo dura e violenta, parecia ter mais poesia. Eram os anos 60, quando surgiu a Cidade de Deus, trazendo a promessa de um paraíso para diversas famílias, que haviam ficado sem moradia, após enchentes e incêndios criminosos em suas favelas de origem. O sonho,  logo se transformou em uma nova favela carioca: sem água, luz, asfalto ou linhas de ônibus. Era um lugar esquecido, - onde o governo e os ricos jogavam o povo menos favorecido -, bem longe do cartão postal da cidade maravilhosa.

Citações instrumentais de canções icônicas aparecem, ao longo do filme, como que chamando nossa atenção para uma nova história, que começa a se desenrolar dentro da trama principal. Assim ocorre no breve romance entre Cabeleira e Berenice, que embalado pelo samba dolente “Preciso me Encontrar”, - composição de Candeia, eternizada na voz de Cartola em 1976 -, chega ao seu derradeiro e trágico fim, deixando sonhos por realizar, ao alvorar de mais um dia na Cidade de Deus.
“Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar...
Quero assistir ao sol nascer

Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver”

Aliás, “Alvorada” é o nome da belíssima composição de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, lançada em 1974, no primeiro disco de Cartola, - quando o músico tinha 65 anos de idade -, com produção de João Carlos Botezelli (Pelão). Esse samba ilustra, com muito lirismo e otimismo, o dia a dia na Cidade de Deus, fazendo um contraponto entre o amor do casal Cabeleira e Berenice e, as duras batidas policiais feitas na favela, em busca dos responsáveis por um roubo que acabou em chacina, impactando irremediavelmente a vida de vários personagens.
“Alvorada lá no morro
Que beleza
Ninguém chora
Não há tristeza
Ninguém sente dissabor”

O tempo foi passado e a trilha sonora seguiu tal cronológica. A Soul Music, à brasileira, de “Azul da Cor do Mar”, - lançada em 1970 pelo próprio compositor Tim Maia -, e “Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapê)”, - composta e interpretada por Hyldon em 1975 -, tocava nos Bailes Black que agitavam a favela nos anos 70, embalando romances adolescentes. Sucessos da Soul Music e do Funk americanos também batiam cartão nessas festas, com músicas como “Get Up (I Feel Like Being A) Sex Machine”, de James Brown,  “Kung Fu Fighting”, de Carl Douglas e “Dance Across The Floor”, de Jimmy Bo Horne, lançadas em 1970, 74 e 78, respectivamente.

O filme mostra detalhes sobre o surgimento, funcionamento e leis do tráfico, bem como o dilema que jovens da comunidade enfrentavam: ganhar a vida honestamente ou pertencer ao mundo do crime. Porque, àquela altura, a Cidade de Deus já tinha um dono ditando as regras que a população deveria seguir. Ocorrem também as primeiras guerras entre gangues, ceifando a vida de crianças e outros inocentes, pelo objetivo de conquistar o domínio dos pontos de venda de drogas.

 “Metamorfose Ambulante”, música de Raul Seixas lançada em 1973, ilustra o anseio por mudança interior e exterior, do traficante Bené que, a partir daquele momento, se apresenta como uma figura carismática na favela, - boa praça e com ares de playboy -. Ao contrário de seu sócio Zé Pequeno, - o Dadinho, lá do começo do filme -, que desde criança já tocava o terror e, com o tempo, se transformou em um violento traficante, profissionalizando o negócio do crime e levando à comunidade o comércio de drogas mais pesadas.

O hard rock “Hold Back The Water”, lançado em 1973 pelo grupo canadense Bachman-Turner Overdrive, apareceu na  trilha para ilustrar que a vida na Cidade de Deus significava estar constantemente no fio da navalha. Um alegre baile, por exemplo, em instantes poderia se tornar uma tragédia.

A Cidade de Deus, que abarcava diferentes crenças, era também um purgatório na terra, onde a violência gerava mais violência, em infindáveis ciclos de vingança. Vejamos o caso de Zé Galinha: honesto ex-atirador do batalhão do exército, que só queria viver “O Caminho do Bem”. Após ter sua família brutalmente assassinada, ele entra para o universo do crime em busca de vingança, ao som de "Nem Vem Que Não Tem”, música de Carlos Imperial, lançada em 1967 por Wilson Simonal, inaugurando o movimento musical e cultural conhecido como Pilantragem.
“Pode aguardar
Que o mundo inteiro
Logo saberá
No Brasil primeiro
O caminho do bem”
O Caminho do Bem (composição de Beto Cajueiro, Serginho Trombone e Paulinho Guitarra, lançada por Tim Maia em 1976)

A única música não lançada na mesma época em que a trama se passa, é “Convites Para a Vida”, de Antônio Pinto, Seu Jorge, Edmilson Capelupi e Fabio Goes. Essa foi gravada especialmente para o longa, e aparece durante os créditos, na voz de Seu Jorge.

O filme Cidade de Deus, tem uma excelente trilha sonora, que além de traduzir os personagens e enriquecer a cena, dá representatividade a importantes movimentos musicais brasileiros, valorizando baluartes da nossa cultura. Músicas são registros socioculturais muito precisos de cada época, uma vez que explicam seu tempo e alertam sobre os tempos vindouros.

* Confira a música “Alvorada”, na voz de MIRIANÊS ZABOT, em seu show Gafieiras e Outras Verves (Baile de Gafieira): https://youtu.be/atmOJJTW0fo

por Mirianês Zabot









A Princesa e o Sapo, conta a história de Tiana, a primeira princesa negra a protagonizar um filme animado da Disney, lançado em 2009. Tudo se passa na misteriosa Nova Orleans, no estado da Louisiana (EUA).

Lembremos a célebre frase “canta a tua aldeia e serás universal”, pois é, a Disney fez exatamente isso em A Princesa e o Sapo. Causando em nós uma imediata identificação com o roteiro, que aborda de uma forma muito delicada e lúdica, o melhor e o pior da humanidade e da nossa sociedade. Através de personagens demasiadamente humanos e, - exatamente por esse motivo -, muito envolventes, o filme traz à luz de uma forma muito natural: - de um lado questões como o racismo, a diferenciação de classes, ostentação, futilidade, preconceito, avareza e ganância; - do outro lado valores como a pureza, o sonhar, perseverança, dignidade, trabalho, família, amizade, amor, alegria, música, religiosidade e ancestralidade. Esses elementos juntos compõem o que chamamos de Cultura de um povo, - de uma aldeia -. Tudo isso se faz presente na animação, bastar ter o coração aberto para sentir.

Para contar essa história e apresentar cada personagem, os diretores John Musker e Ron Clements, usaram a música como fio condutor. E não poderia ser diferente, já que tudo acontece durante o Carnaval, na musical Nova Orleans dos anos 1920.

A trilha sonora de A Princesa e o Sapo, assim como seu roteiro é contagiante. São letras, melodias e arranjos muito bem casados e cheios de referências à história da música do sul estadunidense e aos mestres do Jazz. A trilha da animação que marca o retorno da Disney ao formato dos musicais, foi agraciada com nomeações ou prêmios por importantes entidades da indústria musical e cinematográfica, como Grammy Award, Oscar, Revista Billboar e Rhapsody. Todas as canções foram composta por Randy Newman, exceto "Never Knew I Needed" de Ne-Yo, que não foi traduzida para o português. Entre as músicas que ganharam versão no nosso idioma, estão:

O Jazz “Quase Lá”, apresenta a esforçada e sonhadora Tiana, que desde criança tem o desejo de unir pessoas através da comida que ela serviria em seu restaurante. Nas palavras de seu pai: “Sabe o que a comida tem de bom? Ela reúne as pessoas de todas classes sociais, dá uma sensação boa e põe felicidade no rosto delas”.
"O meu pai me disse um dia
Tudo pode acontecer
Ver o sonho realizado
Só depende de você
Trabalhei bastante até aqui
Agora as coisas vão fluir...
Tantas lutas e problemas
Na vida tive já
Mas eu subi a montanha
Atravessei o rio
Estou chegando lá
Estou quase lá"

Já o fanfarrão Príncipe Naveen, sugere que o oposto seria uma ideia bem melhor...
"Cair na farra sem parar
Não soa nada mal...
Aproveite a vida então
Pra ter um pouco de diversão
É assim que as coisas são"
(Quando Formos Humanos)

A canção "Evangeline", traz a pureza do vagalume Ray, que personifica o amor platônico por uma estrela que brilha no céu e que, ele acredita ser sua amada pirilampo a lhe esperar.
"Como ela tão linda assim
Poderia gostar de mim?
O amor sempre acha um caminho"

O Bluegrass começa a dar o tom em "Vamos Levar Vocês", quando Ray conduz a festiva e reluzente quadrilha caipira de vagalumes "Pelo rio abaixo...", em meio aos sinuosos pântanos da Louisiana.

O misticismo, que faz parte do imaginário de Nova Orleans, surge através do Dr. Facilier na música “Amigos do Outro Lado”. Ele pratica vodu, magia negra e faz pactos com forças sobrenaturais, em troca de favores.

Já a boa prática da religiosidade, aparecesse com a cativante cega, Mama Odie que, com sabedoria, nos faz enxergar a diferença entre “o que queremos” e “aquilo de que necessitamos realmente”. A personagem é uma homenagem à contadora de histórias orleniana, Coleen Salley. 
"Cavando mais até o fundo
Descobrir quem são
Cavando mais até o fundo
Não é difícil não
Só assim vão descobrir o que precisam ter
O brilho do sol pode crer"
(Cavando Mais Até o Fundo)

O destaque especial vai para Louis, o divertido crocodilo trompetista, cujo grande sonho é tocar Jazz de improviso com os humanos, - sem apavorar ninguém, é claro! Louis representa todo amor e genuíno respeito que nós músicos, temos por ela, - a música. Esse personagem, cujo nome é uma justa homenagem à lenda do Jazz e filho de Nova Orleans, Louis Armstrong, sintetiza toda a efervescência musical da cidade, que é considerada o berço desse gênero, que surgiu por influência dos ritmos e cultura africana, trazidos ao país pelos escravos.
"Se eu fosse um ser humano
Iria pra Nova Orleans
E com o meu trompete eu daria um show
Seria um dos galãs
Conhecem Louis Armstrong e Sr. Sidney Brushade
Todos eles vão aplaudir
Quando lhes contarem o que sei fazer”
(Quando Formos Humanos)

O filme musical A Princesa e o Sapo, mostra que os sonhos se realizam. E que se quisermos, podemos até substituí-los por novos e melhorados sonhos, no decorrer da vida. Já o repertório, nos inspira a sair dançando pela sala de casa... Sorrindo atoa!

Depois de assisti-lo, me conta se você, assim como eu, não sentiu uma vontadezinha de ir conhecer...
“Uma cidade por onde o rio desce...
Onde a música começa cedo

E continua até o sol raiar...
Se quiser o bom da vida aproveitar
Venha pra Nova Orleans...
Ricos e pobres seus sonhos vão
Realizar em Nova Orleans”
(Lá em Nova Orleans)

* Para saber mais sobre A Princesa e o Sapo, confira a coluna Assistimos do @quantospaulos no CINE.RG: www.instagram.com/p/B_43O5vl1cq

por Mirianês Zabot






Muito além das versões em português para clássicos natalinos como "Bate o Sino (Jingle Bells)", "Noite Feliz", - originalmente escrita em alemão -, e "Então é Natal", - música de John Lennon, imortalizada por aqui na voz de Simone -, existe uma igualmente bonita e vasta discografia recheada de músicas criadas originalmente por compositores brasileiros. Portanto, parafraseando Jackson do Pandeiro e Severino Ramos, eu digo: “É Natal que eles querem? Eu tenho!”.

Na coluna "A música, o luzeiro e o tempo", dessa edição Especial de Natal da Revista Redação de Beleza, vou contar uma história natalina, que tem a música popular brasileira por protagonista.

Em 1932, um grande baiano conhecido como Assis Valente compôs a música mais importante do cancioneiro natalino brasileiro, chamada "Boas Festas", que no ano seguinte foi gravada e lançada por Carlos Galhardo, em 78 rpm pela gravadora Victor. A música questiona, não só a felicidade inerente à época de Natal, mas até a bondosa figura do Papai Noel.

“Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem”
Boas Festas (Assis Valente)

No entanto, foi na voz de uma mulher, a carioca Madelou Assis, que chegou ao mercado brasileiro, em dezembro 1932 pela Columbia, o 78 rpm com a primeira gravação de uma música com tema natalino, intitulada “Papai Noel (Felicidade)” de Custódio Mesquita. A curiosidade sobre essa letra é que ela descreve um rapto. A personagem pede ao Papai Noel que devolva seu irmãozinho, levado embora por ele, no Natal anterior. Novamente temos um tema melancólico no Natal brasileiro.

“Papai Noel
Você que é tão bonzinho
E todos os anos me visita
E me traz um presentinho
Me faz um favor,
Não esqueça meu pedido
Saberei agradecer se for atendida
Você me traz uma coisa pequena
Que é maior ’ra quem perdeu,
Que mesmo pra quem achou
Você me traz por favor meu irmãozinho
Que ano passado você levou”
Papai Noel – Felicidade (Custódio Mesquita)

Já em 1974, em disco lançando pela Odeon, foi a vez do paulista Adoniram Barbosa usar toda sua inventividade, para na música “Véspera de Natal”, contar a história de um pai, que na noite de Natal, tenta trazer o lúcido à vida de sua tão necessitada família.

“Eu me lembro muito bem
Foi numa ‘véspa’ de Natal
Cheguei em casa encontrei minha nega zangada
A criançada chorando
Mesa vazia não tinha nada
Saí, fui comprar bala-mistura
Comprei também um pãozinho de mel
E cumprindo a minha jura
Me fantasiei de Papai Noel
Falei com a minha nega de lado
Eu vou subir no telhado
E descer a chaminé
Enquanto isso você
Pega a criançada e ensaia o ‘jingoubé’
Ai, meu Deus, que sacrifício
O orifício da chaminé era pequeno
Pra me tirar de lá,
Foi preciso chamar os bombeiro”
Véspera de Natal (Adoniran Barbosa)

Até Chico Buarque foi arrebatamento pelo Natal, lançando em 1967, um compacto, - feito sob encomenda para os clientes de uma imobiliária -, que trazia no lado A, a marcha “Tão Bom que Foi o Natal”, de sua autoria.

“Tão bom, tão bom, tão bom, tão bom
Tão bom que foi o Natal
Ah quem me dera fosse o ano inteiro igual
Olha a cidade que linda
Até parece deserta
A meninada dormindo
De janela aberta
Papai Noel completa toda coleção
Boneca, bicicleta, bola, bala e balão
Pra quem não tem seu tesouro
A vida é só uma esperança
E nada vale mais ouro que inda ser criança
Quem não vive de amor não vai viver sempre assim
Papai Noel planta flor onde não tem jardim
Papai Noel volta só
Papai Noel volta a pé
Papai Noel sem trenó
Pra casa sem chaminé
Em casa só sem criança
Ele vai ler o jornal”
Tão Bom que Foi o Natal (Chico Buarque)
 
A lista de importantes compositores brasileiros tocados pelo espírito natalino é grande em quantidade e qualidade, temos músicas como “Presente de Natal” de Alvarenga e Ranchinho, “Natal das Crianças” de Blecaute, “Natal Pobre” de Luiz Vieira, “Natal na Fazenda” de Altamiro Carrilho, “Cartão de Natal” de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, “Natal dos Caboclos” de Paraguassu e Capitão Furtado, “25 de Dezembro” de Palmeira e Mario Zan, “Papai Noel Chorou” de Zé Paioça e Tonico e Tinoco, e muitas outras pérolas. Vale a audição! Para que essas canções nos inspirem e alimentem em nós o amor e a generosidade.

Desejo que o Natal nos traga luz, para que possamos ver a nós mesmos, e encantamento, para que possamos ver a vida e a todos com mais delicadeza e carinho. Boas Festas!

* Essa pesquisa discográfica foi realizada no rico acervo de LPs, livros, compactos e CDs de música brasileira, pertencentes ao acervo do Instituto Memória Brasil (Assis Ângelo), em São Paulo/SP. Para saber mais sobre o IMB: www.institutomemoriabrasil.com.br

por Mirianês Zabot





As vésperas do Dia Internacional do Forró, 13 de dezembro, data do aniversário do Rei do Baião Luiz Gonzaga, - artista que com sua voz forte e sua sanfona magnífica, traduziu para o mundo a alma nordestina e, porque não dizer, a essência do povo brasileiro -, venho falar de uma música em especial, cujo autor Antônio Barros, com mais de 700 composições gravadas, figura entre os mais prolíficos do gênero musical apresentado por Gonzagão: o forró.

Antônio Barros, cantor e compositor paraibano, que em breve, no dia 11 de março de 2020, completará 90 anos de idade, é autor de xotes, baiões e xaxados imortalizados nas vozes de grandes artistas como Jackson do Pandeiro, Elba Ramalho, Marinês, Trio Nordestino, Alcione, MPB-4, Ney Matogrosso e Fagner, até o próprio Rei do Baião rendeu-se a grandeza da obra de Antônio Barros. Entre os maiores sucessos do compositor estão "Bate Coração" (com Cecéu), "Procurando tu" (com J. Luna) e "Homem com H", música que teve, entre outras gravações, a icônica interpretação de Ney Matogrosso. É justamente sobre "Homem com H" que vou discorrer nessa edição da Coluna “A música, o luzeiro e o tempo”, uma vez que o tema da edição desse mês da Revista Redação de Beleza está debatendo o conceito de homem do século XXI, seus desafios e as diferentes formas de expressar sua masculinidade.

Em 1981 a música "Homem com H", composta anos antes por Antônio Barros, inspirada em uma cena da novela "O Bem Amado", da TV Globo, - na qual um dos personagens tenta afirmar sua questionável valentia, dizendo: “Eu nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, eu sou é homem.”, frase que se tornariam parte da letra dessa música -, volta à baila com grande sucesso, na voz de Ney Matogrosso, como faixa 5 do seu LP homônimo, lançado pela gravadora WEA, o 9º disco da carreira do cantor, sendo que os dois primeiros são da discografia do Secos & Molhados, grupo que Ney formara ao lado de Gerson Conrad e João Ricardo. No mesmo ano a música recebeu o Troféu Imprensa, do canal SBT, na categoria de Melhor Música do Ano.

A letra de "Homem com H" fala de forma jocosa sobre a necessidade, imposta ao homem pela sociedade, de que ele seja o machão, conforme aparece, em expressão de origem nordestina, na seguinte frase da música: “Cabra macho pra danar”. Esse ponto de vista é expressado pela própria mãe do personagem retratado na canção, completando o pensamento ela diz: “Ai meu Deus como eu queria que essa cabra fosse homem”. Pelo estereótipo de masculinidade, arraigado ainda na infância de meninos e meninas, ou até mesmo durante a gestação, como menciona a música, espera-se de um homem ser corajoso e capaz de enfrentar qualquer “valente”, respondendo às ameaças sem titubear, sejam elas desse mundo ou do outro, visto que ele não deveria ter sequer medo de lobisomem. Almeja-se um tipo de “homem das cavernas”, habilidoso em defender sua família, fazendo uso da luta e da truculência.

 “Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come

Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home

E como sou

Quando eu estava pra nascer
De vez em quando eu ouvia
Eu ouvia a mãe dizer
Ai meu Deus como eu queria
Que essa cabra fosse home
Cabra macho pra danar
Ah! Mamãe aqui estou eu
Mamãe aqui estou eu
Sou homem com H
E como sou

Cobra! Home
Pega! Come

Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menina eu sou é home
Menina eu sou é home

Eu sou homem com H
E com H sou muito home
Se você quer duvidar
Olhe bem pelo meu nome
Já tô quase namorando
Namorando pra casar

Ah! Maria diz que eu sou
Maria diz que eu sou
Sou homem com H
E como sou

Homem com H (Antônio Barros)

Fica subentendido que aquele homem que não proceder segundo essas diretrizes, seria um covarde, um medroso incapaz de enfrentar "como um homem" os perigos que venham a se apresentar.

Na voz de Ney Matogrosso, a música “Homem com H” ganha uma dimensão interessantíssima, porque sua imagem, desde a época do grupo Secos & Molhados, apresentava um ser híbrido, que não era nem totalmente homem, nem totalmente mulher, nem inteiramente um bicho. Os figurinos e maquiagens eram descomprometidos com a masculinidade tradicional. Ele também não tinha sequer, a pretensão de ser uma mulher, era uma figura andrógena (termo novo para a época). Definitivamente ele não era, e não é, um “Homem com H”, uma vez que não é machista e é alguém que opta pela empatia, respeito e sutileza no trato com as pessoas.  

Aliado a isso, havia também uma forte expressão corporal nas apresentações de Ney Matogrosso. Nas palavras do próprio Ney: “Só quem podia se expressar fisicamente eram as mulheres, homens não podiam. Eu vi que eu podia me expressar fisicamente...”. Tal postura causou um choque nas pessoas mais conservadoras, “... Embora eu ache que as minhas apresentações não era sexualidades, eu usava minha libido como uma arma, não era para ganhar ninguém, não era sedutor, era agressivo até, porque eu tinha de ser. Já que algumas vezes tentaram me agredir e eu tive que encarrar cinco mil pessoas me xingando, aí eu parei e fiz uma pose, continuaram me xingando...”, nisso ele respondeu aos xingamentos da plateia posicionando-se firmemente um palavrão, bem mais contundente e definitivo. “... Aí começaram a me aplaudir. Entendi nesse momento que eu não podia ter medo e, aprendi para o resto da minha vida, que não podemos ter medo.”

Há uma forte e irônica critica à sociedade na figura artística de Ney Matogrosso. Algo que questiona a hipocrisia e os padrões preestabelecidos, emburrecidos e embrutecidos. Ele controverte a cegueira intelectual da manada, mostrando que existe desamor e pouca compreensão entre as pessoas. O bonito disso, é que essa provocação se apresenta sem contundência, sem apelações desnecessárias e sem ofensas. É a arte sendo disponibilizada a população, com alto nível de qualidade artista e musical e, ao mesmo tempo, cumprindo seu grande papel que é instigar pessoas a pensar e chegar as suas próprias conclusões sobre a proposta artística que lhes é apresentada. Joga luz para que as pessoas enxerguem além, sem ditar qual o ponto de vista elas devem ter sobre a vida ou sobre o mundo.

A título de curiosidade, Ney só foi subir no palco sem os figurinos e maquiagens exóticas, usando apenas um terno branco e sem dançar, mais tarde em 1987, no show “Pescador de Pérolas” por, segundo o próprio artista, “uma necessidade pessoal de se afirmar apenas como cantor”. O fato, é que a intensidade, presença e sensibilidade interpretativa desse grande artista é muito presente, com ou sem figurinos, com ou sem maquiagens.

A reflexão deixada por “Homem com H”, através de seu principal interprete, Ney Matogrosso, é que existem outras formas de expressar a masculinidade. São aquelas onde o homem busca ser mais sensível aos sentimentos dos outros, percebendo as sutilezas das relações humanas. Essa conduta melhora a empatia, que é a capacidade de colocar-se no lugar do outro indivíduo, sentindo assim suas dores e alegrias. É importante lembrar que a expressão da força de um homem não está necessariamente na contundência e nem no “falar grosso”, e que ele, tão pouco precisa fazer “coisas de homem” para se provar como tal. O desafio do homem em 1981 e agora no século XXI, continua sendo o de aceitar-se como ele verdadeiramente é, libertando-se de ideias preestabelecidos e percebendo o quanto é prejudicial, para homens e mulheres, ser aquilo que a sociedade machista exige. É generoso e benéfico pra todo mundo, fazer esse exercício de desconstrução desses padrões alimentados geração após geração, reforçados por pais, professores, amigos e sociedade como um todo, ditando o que é “coisa masculina” e o que é “coisa feminina”.

Porque pensar por si próprio é a verdadeira expressão de liberdade.

* Para saber mais sobre Luiz Gonzaga, Antônio Barros e outros importantes nomes da música brasileira, recomendo a leitura dos textos no Blog do Assis Ângelo (jornalista, biógrafo de Luiz Gonzaga e estudioso da cultura popular): http://assisangelo.blogspot.com/search?q=Luiz+Gonzaga

por Mirianês Zabot





Nos idos de 1983, chegava ao público brasileiro, pela gravadora EMI-Odeon, o álbum "Alô Alô Brasil", décimo primeiro da carreira de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha. Nesse disco estavam duas músicas que viriam a se tornar grandes sucessos na carreira do cantor, compositor e violonista, eram a faixa 5 do lado A, intitulada "Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)" e, no lado B, estava a faixa “Feliz”. Aqui falarei sobre a primeira delas, música que apareceria novamente na discografia póstuma de Gonzaguinha, em bonito LP/CD ao vivo, lançado pela Som Livre em 1993, chamado “Cavaleiro Solitário”, esse recheado de sucessos.

Quando recebi o convite para estrear uma Coluna sobre música, na Revista Redação de Beleza, informaram-me que o tema da edição na qual sairia o meu primeiro texto seria “O que é ser um homem moderno e contemporâneo? Os desafios do homem do século XXI.”. Imediatamente lembrei-me da música "Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)", do moleque Gonzaguinha, compositor a quem dediquei meu mais recente CD "Mirianês Zabot canta Gonzaguinha - Pegou um Sonho e Partiu" e evidentemente, alguns anos da minha vida em um mergulho intenso, carinhoso e encantador em sua obra. Batizei a Coluna de “A música, o luzeiro e o tempo”, mas o porquê desse nome, já é um assunto para outra publicação...

Antes de falar da música em questão, falarei de seu autor. É marca registrada de Gonzaguinha nunca ficar apenas na superfície em suas composições. Ele tinha uma visão bastante ampla e profunda sobre os temas que abordava. E como isso é bonito! Como é necessário! Multifacetado, nos deixou um repertório que vai do lírico ao sarcástico e do romântico ao engajado. Compositor, cujas palavras, têm o peculiar poder de jogar luz sobre as nossas vidas nos fazendo refletir. Por vezes, até nos vemos retratados em alguma de suas letras. É por esses motivos que a música de Gonzaguinha é eterna.

Gonzaguinha foi um compositor que notoriamente entendeu a alma feminina. Ainda assim, soube traduzir também a alma masculina, de uma forma desprendida de quais quer costumes machistas da época. Percebendo e, acima de tudo, aceitando que o homem também chora e é sensível, que luta e trava grandes batalhas sim, mas por ser simplesmente humano, precisa e merece um descanso para respirar e sentir.

O compositor retrata um homem que recarrega suas forças na delicadeza e nas palavras amorosas. Cuja força não está necessariamente na contundência e no “falar grosso”. Mostra que o homem não precisa fazer “coisas de homem”, se isso não lhe for verdadeiro. Abre o caminho para pensarmos que a masculinidade pode ser expressada de maneira diferente por cada indivíduo e mostra que não há um único jeito de agir para ser considerado homem.

Essa letra propõe desconstruir padrões que foram plantados desde a infância e que, geração após geração, foram reforçados por pais, professores, amigos e sociedade como um todo, que ditam o que é “coisa masculina” e o que é “coisa feminina”. Para permitir o surgimento de um homem que tem empatia, visto que conseguiu aceitar-se como é verdadeiramente, libertando-se de ideias preestabelecidos. Um homem que percebe o quanto é opressivo, para todo mundo, ser aquilo que a sociedade machista exige de homens e mulheres.

Mostra que um homem pode ter medo, dúvidas e ansiedades, pode amar, sofrer, errar e até chorar. Porque os guerreiros são no fundo meninos, de alma sensível e coração amoroso. E são essas as suas armas mais poderosas.

Atente-se ao fato de que a música é de 1983!! Pois é, como veremos na letra abaixo, Gonzaguinha estava à frente de seu tempo.

"Um homem também chora, menina morena
Também deseja colo, palavras amenas
Precisa de carinho, precisa de ternura
Precisa de um abraço da própria candura
Guerreiros são pessoas tão fortes, tão frágeis
Guerreiros são meninos no fundo do peito
Precisam de um descanso, precisam de um remanso
Precisam de um sono que os torne refeitos
É triste ver esse homem, guerreiro, menino
Com a barra de seu tempo por sobre seus ombros
Eu vejo que ele berra, eu vejo que ele sangra
A dor que tem no peito, pois ama e ama
O homem se humilha se castram seus sonho
Seu sonho é sua vida e vida é o trabalho
E sem o seu trabalho, o homem não tem honra
E sem a sua honra, se morre, se mata
Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz
"
Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)
Gonzaguinha

Essa mudança no homem, que hoje vem se consolidando, nada mais é do que uma continuidade de ideias plantadas há alguns anos. Sabemos que as grandes mudanças perpassam gerações, mas, estamos no caminhar. E temos até a música como ferramenta para sensibilização e para inspirar uma transformação genuína para as novas gerações, que não viram o semear dessas ideias, mas que sentem a necessidade dessa mudança de paradigmas.

Com alegria no coração, percebo que as mensagens de encantamento e delicadeza de Gonzaguinha seguem ecoando. Quer seja na voz apaixonada e urgente do próprio compositor, quer seja nas vozes de inúmeros intérpretes como eu, que encontraram identificação nas palavras de amor, de coragem, de fé e justiça, no olhar lúcido porém sonhador, na preocupação como bem-estar das pessoas e na paixão pela vida, expressas nas músicas de Gonzaguinha. Sua obra está eternizada nos corações dos apreciadores da boa música e naqueles que nutrem a esperança.

por Mirianês Zabot


* Confira o vídeo clipe da música “De Volta ao Começo”, do álbum “Mirianês Zabot canta Gonzaguinha – Pegou um Sonho e Partiu”, com participação especial de Claudette Soares: https://youtu.be/GakbZAvSShE



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